Sempre há
poesia. Ela surge em todos os lugares. Não cabe ao sujeito falante que se
submete à linguagem determinar seu surgimento ou sua ocultação. A língua é
essencialmente poética e a sua relação com as diversas situações de comunicação
acentua seu caráter metafórico e metonímico.
Quando Roger Waters compôs a canção “The
final cut” ele tinha a intenção de produzir efeitos estéticos e estilísticos típicos
do gênero. O compositor, o poeta, o escritor têm uma ideia dos efeitos que
pretendem atingir com seus textos – embora possa haver outros efeitos para eles
inesperados: a linguagem da poesia em conjunção com outros fatores pode gerar
sentidos que ninguém pode prever. Especialmente o sujeito produtor de tais
gêneros textuais. No texto de Waters, uma letra de música que fala sobre perdas
pessoais e sentimentais, surge o seguinte pensamento – expresso aqui em uma
tradução livre: “longe de voar alto em claros céus azuis, despenco em uma
espiral para o buraco no chão em que me escondo”. Um belo exemplo de um texto
romântico, com o egocentrismo e a negatividade característicos da geração chamada
pelos críticos literários de “Geração mal do século”.
Diogo Silva é filho de Ogum, o orixá
guerreiro de uma das religiões afro. E Diogo Silva é de fato e de direito um
lutador. Além disso, Digo Silva é um dos atletas brasileiros do taekwondo e participou
das olimpíadas de Londres. O filho de Ogum saiu da contenda invicto, mas sem
medalha: o guerreiro tem na luta a sua principal premiação. Ele luta porque
nasceu para lutar.
Entretanto, não vivemos na pureza e
na poesia da existência de um guerreiro e Diogo deixa Londres como mais um dos
atletas brasileiros que não obtiveram o sucesso em suas modalidades. Não perdeu
nenhuma das lutas que disputou, mas foi desclassificado por decisão dos juízes.
O guerreiro volta para o Brasil para passar mais quatro anos sem que o grande
público brasileiro, “fanático por jogos olímpicos”, dê por sua falta. Em 2016,
no Rio de Janeiro, todos os “fãs” do Filho de Ogum estarão de volta para
prestigiá-lo e torcer por sua vitória. E para reclamar de sua falta de empenho
e controle emocional em caso de derrota.
Ferido em seu orgulho de guerreiro,
Diogo apresentou seu desabafo com os olhos lacrimejantes: “agora, vou voltar
para o meu buraco e terei que cavar todo o caminho de volta para topo”. Não vi
nas Olimpíadas até este momento um pensamento tão adequado ao que é a realidade
de um atleta brasileiro que não tem o mesmo apoio dos atletas e das modalidades
mais prestigiadas. E aí que surge, inesperada, porém contundente, a poesia. Um
texto com um pensamento semelhante ao de Waters ganha vida em um contexto novo,
gerando significados e produzindo efeitos de sentido. O eu lírico da letra de
Waters e Diogo Silva compartilham o mesmo sentimento de derrota e abandono,
cada um em seu lugar, com posturas distintas: um para se esconder; o outro para
cavar sua saída de volta à luz.
Não sou fã do taekwondo e não tenho
interesse em assistir a competições da maioria das modalidades olímpicas, mas
respeito todos aqueles que se aventuram a praticar esportes que, no Brasil, são
desprestigiados pela grande mídia e por consequência pelo grande público – no qual,
obviamente, me incluo. Respeito um atleta como Diogo Silva que luta por
melhores condições para seu esporte, por mais financiamento, por mais atenção.
Isso mesmo. Além de praticar o taekwondo, Diogo é um militante da causa do
esporte. Cavar de volta para a luz significa ter que voltar a mendigar apoio e
patrocínios. Se estiver no tatame em 2016, Diogo terá chegado lá como um
operário do esporte, como se definiu em entrevista à ESPN: “Tem três tipos de
atleta: aquele que ganha, aquele que tem patrocínio e o operário. O operário
vai sempre reclamar, discute, faz greve, briga. Quem ganha medalha, não vai
falar nada. Quem tem grana, também não. Então, acho que como dentro da história
do nosso país, quem está ferrado vai à luta. Quem está bem de vida não vai à
luta". Talvez a profundidade desse tal buraco seja bem maior do que
imaginamos.
Faço parte do grande público, mas
não tenho sua postura ingênua e arrogante. Trata-se de um público que engole a
conversa de que o Brasil é o país mais poderoso do planeta e que isso deve se
refletir em eventos como as Olimpíadas: devemos esmagar nossos adversários
porque somos brasileiros, um povo que sobrevive às adversidades, um povo forte
e lutador, com nervos de aço, que não pode se esquivar diante da possibilidade
do soco. Não. Somos seres humanos falíveis como todos os outros.
Somos falíveis ao ponto de não dar a
menor atenção a esportes olímpicos a não ser em época de Olimpíada e exigir que
o Brasil seja belo, forte e impávido, trazendo todas as medalhas de ouro que
dispute. Trata-se de uma visão que baseia todas as análises em exceções e não
em regras. Quem vence sob condições adversas é exceção. Não fosse assim, todos
os brasileiros teriam sucesso, poder econômico e prestígio em nossa sociedade.
Neste grupo, encontramos uma minoria que veio de camadas discriminadas e
desprovidas das mínimas condições de crescimento social e cultural. Reitero,
portanto, o pensamento de que exceção não é regra.
Mas o que interessa é a poesia. O
canto gritado do guerreiro filho de Ogum que diz que cavará todo seu caminho de
volta, porque nasceu para lutar. Quando vier à luz novamente, já será, sem
dúvida e excepcionalmente, um vencedor.
Juljan Lima Palmeira
10/08/2012
Imagem:gazeta press
Um comentário:
Você, Juljan Palmeira, não gosta que eu fale palavrões. Porém, vou soltar um PUTA QUE PARIU! :D
Texto perfeito! E, depois do dito, só o que interessa é a poesia. O meu país de gente "brilhante", "guerreira" e blá blá blá, só não é(está) pior porque, nele, existem (meia dúzia de) pessoas como você.
Um viva a você meu operário, lutador e vencedor. ;)
Postar um comentário