sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O corte final e o filho de Ogum


             Sempre há poesia. Ela surge em todos os lugares. Não cabe ao sujeito falante que se submete à linguagem determinar seu surgimento ou sua ocultação. A língua é essencialmente poética e a sua relação com as diversas situações de comunicação acentua seu caráter metafórico e metonímico.
            Quando Roger Waters compôs a canção “The final cut” ele tinha a intenção de produzir efeitos estéticos e estilísticos típicos do gênero. O compositor, o poeta, o escritor têm uma ideia dos efeitos que pretendem atingir com seus textos – embora possa haver outros efeitos para eles inesperados: a linguagem da poesia em conjunção com outros fatores pode gerar sentidos que ninguém pode prever. Especialmente o sujeito produtor de tais gêneros textuais. No texto de Waters, uma letra de música que fala sobre perdas pessoais e sentimentais, surge o seguinte pensamento – expresso aqui em uma tradução livre: “longe de voar alto em claros céus azuis, despenco em uma espiral para o buraco no chão em que me escondo”. Um belo exemplo de um texto romântico, com o egocentrismo e a negatividade característicos da geração chamada pelos críticos literários de “Geração mal do século”.
            Diogo Silva é filho de Ogum, o orixá guerreiro de uma das religiões afro. E Diogo Silva é de fato e de direito um lutador. Além disso, Digo Silva é um dos atletas brasileiros do taekwondo e participou das olimpíadas de Londres. O filho de Ogum saiu da contenda invicto, mas sem medalha: o guerreiro tem na luta a sua principal premiação. Ele luta porque nasceu para lutar.
            Entretanto, não vivemos na pureza e na poesia da existência de um guerreiro e Diogo deixa Londres como mais um dos atletas brasileiros que não obtiveram o sucesso em suas modalidades. Não perdeu nenhuma das lutas que disputou, mas foi desclassificado por decisão dos juízes. O guerreiro volta para o Brasil para passar mais quatro anos sem que o grande público brasileiro, “fanático por jogos olímpicos”, dê por sua falta. Em 2016, no Rio de Janeiro, todos os “fãs” do Filho de Ogum estarão de volta para prestigiá-lo e torcer por sua vitória. E para reclamar de sua falta de empenho e controle emocional em caso de derrota.
            Ferido em seu orgulho de guerreiro, Diogo apresentou seu desabafo com os olhos lacrimejantes: “agora, vou voltar para o meu buraco e terei que cavar todo o caminho de volta para topo”. Não vi nas Olimpíadas até este momento um pensamento tão adequado ao que é a realidade de um atleta brasileiro que não tem o mesmo apoio dos atletas e das modalidades mais prestigiadas. E aí que surge, inesperada, porém contundente, a poesia. Um texto com um pensamento semelhante ao de Waters ganha vida em um contexto novo, gerando significados e produzindo efeitos de sentido. O eu lírico da letra de Waters e Diogo Silva compartilham o mesmo sentimento de derrota e abandono, cada um em seu lugar, com posturas distintas: um para se esconder; o outro para cavar sua saída de volta à luz.
            Não sou fã do taekwondo e não tenho interesse em assistir a competições da maioria das modalidades olímpicas, mas respeito todos aqueles que se aventuram a praticar esportes que, no Brasil, são desprestigiados pela grande mídia e por consequência pelo grande público – no qual, obviamente, me incluo. Respeito um atleta como Diogo Silva que luta por melhores condições para seu esporte, por mais financiamento, por mais atenção. Isso mesmo. Além de praticar o taekwondo, Diogo é um militante da causa do esporte. Cavar de volta para a luz significa ter que voltar a mendigar apoio e patrocínios. Se estiver no tatame em 2016, Diogo terá chegado lá como um operário do esporte, como se definiu em entrevista à ESPN: “Tem três tipos de atleta: aquele que ganha, aquele que tem patrocínio e o operário. O operário vai sempre reclamar, discute, faz greve, briga. Quem ganha medalha, não vai falar nada. Quem tem grana, também não. Então, acho que como dentro da história do nosso país, quem está ferrado vai à luta. Quem está bem de vida não vai à luta". Talvez a profundidade desse tal buraco seja bem maior do que imaginamos.
            Faço parte do grande público, mas não tenho sua postura ingênua e arrogante. Trata-se de um público que engole a conversa de que o Brasil é o país mais poderoso do planeta e que isso deve se refletir em eventos como as Olimpíadas: devemos esmagar nossos adversários porque somos brasileiros, um povo que sobrevive às adversidades, um povo forte e lutador, com nervos de aço, que não pode se esquivar diante da possibilidade do soco. Não. Somos seres humanos falíveis como todos os outros.
            Somos falíveis ao ponto de não dar a menor atenção a esportes olímpicos a não ser em época de Olimpíada e exigir que o Brasil seja belo, forte e impávido, trazendo todas as medalhas de ouro que dispute. Trata-se de uma visão que baseia todas as análises em exceções e não em regras. Quem vence sob condições adversas é exceção. Não fosse assim, todos os brasileiros teriam sucesso, poder econômico e prestígio em nossa sociedade. Neste grupo, encontramos uma minoria que veio de camadas discriminadas e desprovidas das mínimas condições de crescimento social e cultural. Reitero, portanto, o pensamento de que exceção não é regra.
            Mas o que interessa é a poesia. O canto gritado do guerreiro filho de Ogum que diz que cavará todo seu caminho de volta, porque nasceu para lutar. Quando vier à luz novamente, já será, sem dúvida e excepcionalmente, um vencedor.

Juljan Lima Palmeira
10/08/2012
Imagem:gazeta press
            



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

As Olimpíadas,o futebol e o velho sistema


           É inevitável que não haja certa comoção com as Olimpíadas, comoção esta que se amplia quando os meios de comunicação começam a criticar negativamente os atletas brasileiros que não logram êxito em suas modalidades. No esporte, a vitória e a derrota são acontecimentos muito próximos. Quando o atleta entra na arena, ele não está sozinho. Os seus adversários treinaram tanto quanto ele para disputar os jogos. Se se chegou a uma final, já se trata de um feito espetacular. Muitos outros foram deixados para trás. O ouro, a prata ou o bronze serão decididos por detalhes ínfimos, que não desmerecem os perdedores, apesar de glorificar os vencedores. Quando os jornais dizem que este ou aquele atleta decepcionou, eles falam em termos das expectativas que se criam em torno de campeões. A coisa mais difícil do campo esportivo é ser o primeiro, porque, uma vez lá, as pessoas vão querer que você fique sempre lá – enquanto há uma centena de outros atletas que querem tirá-lo daquela posição. A diferença do esporte em relação a outras áreas é que só se chega lá por mérito verdadeiro: não há conchavos ou esquemas que fazem uma menina do Piauí ser medalhista de ouro no judô. Mas agora, nas próximas edições, se ela for menos do que ouro, já surgirão as manchetes acerca da “grande decepção”. Quem compra esse tipo de ideia é tão cego quanto quem a publica.
            O esporte amador no Brasil não tem os mesmos incentivos que em países desenvolvidos. Somente atletas de ponta como César Cielo e modalidades de destaque como o voleibol recebem patrocínios elevados e boas condições de treinamento. Milhares de outros têm que sacrificar muito de suas vidas para pelo menos chegar a uma competição internacional. Caso estes cheguem a uma conquista improvável, terão acesso a condições que deveriam ser iguais para todos. Mas não se pode falar em condições iguais no capitalismo. A lógica do sistema é muito clara: se vende, financiamos; se não vende, aquele abraço.
            Algo que também sempre surge no Brasil em momentos de Olimpíada, no calor das críticas de uma mídia financiada pelos mesmos que queriam ver seus produtos vendidos por atletas de ouro, é a comparação entre o futebol e os demais esportes. Meus caros, o futebol vende. Não só no Brasil. Gera milhões para emissoras de TV e patrocinadores. É isso que interessa em um sistema capitalista. É a mesma coisa que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos com o Baseball, a NBA e o Superbowl. A diferença é que lá as universidades – na sua maioria privadas e de boa qualidade – se encarregam dos esportes olímpicos. Surgem as histórias de que o futebol tem mais dinheiro e que os jogadores de futebol recebem salários altíssimos. Acredito que não é o que pensam os jogadores de times como o Botafogo da Paraíba, do Treze, da Desportiva de Guarabira e de centenas de outros pequenos clubes do Brasil. A comparação inevitável no momento entre atletas olímpicos e futebolistas milionários pode ter como alvo Neymar, que está entre os jogadores mais bem pagos do mundo. Mas quem paga esse salário? São os governos? Não. Os governos estão gastando indevidamente o dinheiro do contribuinte na construção de estádios – isso é errado. Neymar está sendo mantido no Brasil através de uma parceria entre empresas privadas formadas pelo Santos Futebol Clube – time que defende – e grupos de investidores. Isso mesmo. Investidores. Espera-se retorno financeiro de jogadores como Neymar. Ou vocês acham que todos os comerciais nos quais ele aparece são de graça? As camisas dos times brasileiros atualmente são verdadeiros abadás de tantos patrocínios que nem sempre combinam com as cores do clube. Na França, país que vive uma recessão violenta, há poucas semanas, o clube de futebol Paris Saint Germain contratou o sueco Zlatan Ibrahimovic, o brasileiro Thiago Silva e o argentino Ezequiel Lavezzi por uma soma próxima aos 300 milhões de reais, segundo o portal de notícias R7. Então é hora de pararmos de pensar que futebol só é milionário aqui e para todos.
            Todos os atletas olímpicos merecem respeito e reconhecimento. Aqueles que têm menos apoio merecem ainda mais. Se eles “decepcionaram” a mídia, azar da mídia. Parabéns a todos os atletas que estão nos jogos olímpicos representando a si e a seus países, enfrentando adversidades, vencendo ou não. Apesar do que o sistema diz, competir é importante sim. Vencer ou perder é consequência de estar na luta.

Juljan Lima Palmeira
04/08/2012